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(Sinónimo de) Carmezim

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04
Jan18

Guardado na Estante #10 - A Quinta dos Animais

Que saudades de escrever um post destes! Para os mais distraídos, isto não acontecia desde o dia 4 de outubro que, curiosamente, é há precisamente três meses. Porquê, perguntam vocês e muito bem e a resposta é muito simples: vivi, estes últimos três meses, numa ilusão. Num dos posts em que vos contei das minhas inseguranças relativamente ao mestrado disse que aquilo que me deixava mais insegura era ainda não ter lido livros da área. Livros científicos, propriamente ditos. Os últimos três meses foram passados a viver na convicção que seria capaz de ler um livro científico de uma ponta ou outra, sem pegar num livro de outro género nos entretantos. 

 

O que realmente aconteceu? Uma desilusão e teimosia como nunca vi que, em conjunto, resultaram nisto. Desilusão porque olhava para o livro em cima da secretária ou da mesa de cabeceira e fingia-me de cega. Teimosia, porque mesmo assim não o tirava de cima da secretária ou da mesa de cabeceira nem sequer ia buscar outro livro com uma história propriamente dita para lhe fazer companhia. Aquele livro não foi lido, nem deixou ler. Até que chegou a última semana do ano e eu pensei que não poderia passar o ano com aquela situação insustentável. 

Decidi então pegar num livro que comprei e que há muito queria ler - A Quinta dos Animais, de George Orwell. Quando falei aqui do Admirável Mundo Novo de Huxley, disse logo que a ter que escolher entre a sua distopia e a de Orwell, escolheria a de Orwell. Não sei se por ter sido o primeiro livro do género que li e por isso me marcou mais, mas a verdade é que a escrita de Orwell assentou-me que nem uma luva. Escusado será dizer que em menos de 24 horas A Quinta dos Animais estava guardada na estante, ao lado de 1984 e com cinco estrelas no meu perfil do Goodreads. 

 

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A primeira coisa em que reparei neste livro foi no título, visto que são várias as edições com as quais me fui cruzando ao longo dos anos com o nome O Triunfos dos Porcos. Gosto mais do título desta edição que li porque, para além de ser a tradução correta do original, acho que acaba por ir melhor ao encontro não só da história, mas também do que esta pretende simbolizar. Esta justificação e outras, relativas à tradução, estão até muito bem exploradas e explicadas nas primeiras páginas do livro. A mim convenceu-me. 

 

Para não cairmos no erro de pensar que A Quinta dos Animais é mais uma história mirabolante como O Deus das Moscas de Golding ou A Metamorfose de Kafka - se bem que até essas não são  isso -, há que fazer uma contextualização histórica da época em que é escrita, reconhecendo também quem o escreve e como Orwell pode ser tão crítico, tão agitador, tão pouco correto, sobretudo para a época em que viveu. 

 

Ainda nas primeiras páginas do livro referentes às opções de tradução é nos contada um pouco da história desta obra. Curiosamente, em muitas versões, este livro tinha o subtítulo de A Fairy Story, que é como quem diz um conto de encantar, um conto de crianças. Depois de ler cada palavra escrita ao estilo orwellista percebemos que A Quinta dos Animais é tudo menos isso. Esta história é triste, é revoltante e pior que tudo é que é uma maneira legítima de olhar a realidade. 

 

Fartos de serem explorados pelo ser humano, de serem separados dos seus filhos, de trabalharem de sol a sol para serem mal alimentados, os animais da Quinta do Infantado perceberam a raíz de todos os seus problemas: os humanos. Consequentemente, levaram a cabo uma revolução através da qual expulsaram os seus antigos amos. Nesta nova quinta, a única em Inglaterra governada por animais para os animais, o lema era só um: todos os animais são iguais. 

 

No entanto, há medida que a história progride a uma velocidade que torna impossível pousar o livro durante dois segundos, percebemos que tal como os homens, alguns animais também se deixam corromper pelo poder. "Todos os animais são iguais. Mas alguns são mais iguais do que outros.", chega-se mesmo a ler algures nas páginas da obra. 

 

Perante esta situação, o autor utiliza o analfabetismo, a falta de astúcia e inteligência para justificar a propaganda, a caça "ao homem" e as mentiras nas quais este regime - o Animalismo - assentava. Vemos que existe claramente um "dentro da quinta" e um "fora da quinta", tendo este limites reais das vedações, mas acima de tudo, limites ideológicos. Quando ouvimos os animais a falar da sua vida "dentro da quinta", ouvimos sempre falar de como não existe vida melhor que aquela, mesmo que os mais fracos vivam na permanente dúvida se antes era pior ou não. Por outro lado, o que se contava "fora da quinta" era totalmente diferente: que ali os animais cometiam canibalismo, que viviam no caos e outros rumores. Tudo isto, para além dos aspeto óbvio que dividia estes dois mundos: um era governado por homens e outro por animais. 

 

Este livro, estas personagens e estes dois cenários acabam por ser ainda mais dificeis de digerir quando nos apercebemos que A Quinta dos Animais é na realidade uma metáfora para a revolução russa, na União Soviética, que viria dar origem à ditadura. Com esta obra o autor não procura apenas criticar a ditatura que então se instalou na União Soviética, mas também falar do seu entendimento sobre todas as revoluções que aconteceram ou possam vir a acontecer. Para o autor, essa rutura vai acabar por dar origem apenas a um novo tipo de poder que, na prática, vai proteger os mesmo que protegia antes. 

 

Não posso dizer que concordo com esta visão de Orwell, mas também já todos sabemos que o senhor era mesmo pessimista. Concordando ou discordando, A Quinta dos Animais é uma obra política brilhante que quase parece não o ser, se não lermos com atenção. Mais dez pontos para a equipa Orwell!

 

Bons livros são (Sinónimo de) Carmezim. 

Marta. 

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