A minha visita VIP ao São Carlos
Já aqui tenho falado várias vezes de como a adaptação ao mestrado está a ser bem mais complicada do que eu algum dia esperei. É complicado passar de um auditório com 100 alunos, onde todos passam despercebidos, para uma sala onde, em média, estão uns 8 alunos. Como se isso já não fosse choque o suficiente, é ainda mais complicado quando somos os mais novos, ficando assim rodeados de pessoas que já trabalham há anos na área e que estão ali para se atualizarem.
Esse choque de que falo é a principal - vá, e quiçá única - desvantagem de se entrar para um mestrado apenas meses depois de se ter concluído a licenciatura. O que vale é que, aos pouquinhos, começo a ver que tudo o resto são vantagens. Uma dessas vantagens são os professores. Também tive a sorte de ter professores incríveis durante a minha licenciatura, mas no mestrado, tal como o nível de ensino, também os professores dão o salto na escada qualitativa. É um privilégio poder ser um das oito pessoas que está naquela aula, com aqueles profissionais, e poder absorver cada palavra de conhecimento que eles nos dizem. Para além disso, é também graças a estes professores que vão surgindo oportunidades únicas. Na passada sexta feira surgiu uma dessas oportunidades.
A aula de sexta-feira - provavelmente a minha cadeira preferida - foi no Teatro Nacional São Carlos. Tive a oportunidade única de assistir a uma visita guiada "especial", a todos os cantinhos do teatro, guiados pelo arquiteto residente. Várias vezes passei ao lado do edifício do São Carlos e é sem dúvida daqueles marcos da cidade que não passam despercebidos. É uma marca do Neoclacissismo em Portugal e é um dos poucos grandes teatros concebidos para ópera na Europa que não ardeu nem foi destruído.
Começámos a visita precisamente no lado oposto ao edifício para que o pudessemos ver em todo o seu esplender, contemplando cada pormenor da sua fachada. Por ter sido uma construção pós-Revolução Francesa também ele denuncia diferenças claras em ter arquitetónicos para outros edifício construídos antes da revolução.
Como se eu já não me sentisse especial o suficiente entrámos pela porta dos artistas. Se calhar todas as visitas guiadas ao teatro começam precisamente por este lado, mas é verdade que não consegui esconder o entusiasmo por estar a entrar por uma porta que não a principal!
Seguimos por escadas íngremes e por elevadores que à primeira vista poderiam parecer duvidosos, mas chegámos com toda a segurança à sala dos cenógrafos. Apesar de ser uma sala que hoje em dia é sobretudo utilizada para arrumos não perdeu aquela atmosfera quase mágica que tantas vezes se associa ao universo do teatro.
Paredes de todas as cores com mensagens escritas por cima de outras, nome de artistas, possíveis piadas privadas entre atores, flores, acessórios colados na parede, asneiras... tudo o que se possa imaginar está nesta sala. Este espaço que se caracteriza sobretudo pela sua cor e alegria - como diz no pedaço de cartão da primeira fotografia - era o sítio onde eram idealizados, construídos e pintados os cenários para as óperas. No teto desta sala existe ainda uma estrutura com o ar mais perigoso do mundo que servia para se subir e ver os cenários dum patamar superior para se ter a certeza que estavam a ficar tal e qual o programado.
Este é outro daqueles espaços que não sei se está incluído na visita "comum" ao teatro. Espero que esteja porque realmente foi um experiência incrível sentir que, independentemente de já não trabalhar ali ninguém, o espírito da arte não foi embora com as pessoas. É um espaço musealizado só por si.
A sala que se vê nas duas fotos acima é ao lado da sala dos cenários: a carpintaria. Outro espaço já sem grande uso hoje em dia, servindo apenas para concertar determinadas peças do teatro como bancos, mesas ou cadeiras. Aqui eram construídos os acessórios que fossem depois complementar os cenários pintados na sala ao lado. Estando a vários metros de altura, a sala de carpintaria destaca-se ainda pela sua vista maravilhosa para o Tejo. Nesta sexta-feira estava mau tempo, mas reza a lenda que em dias de sol se consegue ver a Arrábida.
Depois de visitarmos a sala da carpintaria ouvi dizer que estávamos a caminho do palco, finalmente. Apesar de toda a visita estar a ser incrível, por estar a conhecer espaço que nem imaginaria que existissem por trás da cortina, a verdade é que o palco... é sempre o palco. Senti os primeiros arrepios quando chegámos à zona por trás do palco, que podem ver nas imagens acima. Até o cheiro ali era diferente: era cheiro a teatro, e eu há anos que não vou a uma grande sala ver uma peça.
Neste momento, o meu professor disse-nos muito sério: "Estão prestes a passar por uma experiência quase religiosa. Não é qualquer um que pisa o palco do São Carlos." Não que tivesse achado que o professor estivesse a exagerar, mas também é verdade que não esperava sentir o que senti. Entrámos no palco, olhei em frente e ia ficar sem ar nos pulmões.
As fotografias não fazem jus, nem de perto nem de longe, à magnificiência daquele sítio. Se já admirava os atores de uma forma geral, depois de ter esta experiência ainda admiro mais porque não sei como não se desmancham a chorar sempre que abrem as cortinas e não só se deparam com uma sala destas, mas também com uma sala destas CHEIA.
Nunca tinha entrado no São Carlos - era a única da turma. Todos já lá tinham ido ver óperas e aqui a ignorante é que nunca arranjou coragem para tal. A princípio fiquei a sentir-me mal, mas depois fiquei satisfeita deste ter sido o meu primeiro contacto com este edifício maravilhoso. Acho que agora, quando lá for ver uma ópero, o meu olhar sobre o que me rodeia vai ser um olhar muito mais sensível.
Do palco passámos para a sala dos maquinistas - que é como quem diz, os senhores que desciam e subiam os cenários. Esta foi para mim a sala mais triste. Como podem ver na fotografia, nesta sala existem dezenas, talvez centenas de cenários de grandes óperas, todos dobradinhos uns em cima dos outros. Foi-nos dito que não se sabe bem o que é que ali está. Cenários antiquíssimos, provavelmente de grande valor, estão ali guardados sem estarem registados ou inventariados. Esta é uma das questões que, na área do património e da cultura em Portugal, se repete mais vezes.
Tal como noutros setores, existe muito trabalho por fazer... mas não há dinheiro para pagar a quem o faça. Não há dinheiro para pagar a profissionais, não há sítio para os estender nem sítio para o colocar depois de inventariados - porque seria um ultraje voltar a empilhá-los uns em cima dos outros. Para além disso, verdade seja dita: por muito que existam pessoas como eu, que valorizam a arte e o património, são poucos aqueles que se podem dar ao luxo de "trabalhar para aquecer". Resta esperar que melhor dias virão e que, quando esses dias chegarem, não seja tarde demais.
Depois da sala dos maquinistas, o arquiteto disse que nos ia levar para a sala da qual ele mais gosta, a seguir à sala do palco. Foi neste momento que eu soube que estava a ter uma oportunidade única: o espaço que se pode ver nas fotografias acima é um espaço restrito a visitas. O sotão do Teatro Nacional São Carlos. Aqui vemos toda a estrutura que sustema a sala do palco, situando precisamente por cima dela.
A figura cilíndrica, enorme, que se vê ao centro é um chaminé para fazer circular o fumo em caso de incêndio, como era costume acontecer em teatros da época. Este sotão já sofreu várias ações de conservação, nomeadamente com as vigas de aço que se pode ver a branco, de forma a impedir que a madeira se desgastasse ao ponto de se notarem desníveis no teto da sala do palco.
Apesar de preferir sempre os dourados, as colunas a imitar o greco-romano, as coroas e os grandes lustres, não deixou de ser interessante ver a teia que segura esta estrutura.
Por falar em dourados, depois do sotão seguimos para outro daqueles locais que eu mal podia esperar para visitar: a tribuna real. Quando pisámos o palco, olhar para a tribuna era como olhar outro espetáculo. Sendo as duas pontas da sala, acabavam ambas por competir pela atenção do público - de um lado, os atores e do outro, as personalidades mais importantes do reino e hoje, do Estado.
Na primeira fotografia vê-se a parte de dentre da tribuna e na debaixo temos a vista da mesma. Para além de ser o lugar que mostrava quem detinha o poder é também outro daqueles sítios absolutamente mágicos quando nos são ditos alguns nomes de pessoas que já lá estiveram - recentemente, o Presidente Marcelo Rebelo de Sousa que no intervalo do espetáculo abriu as portas da tribuna para tirar selfies.
É verdade que saio muitas vezes das minhas aulas com muito mais dúvidas do que aquelas com que lá entrei. É verdade que muitas vezes saio de lá frustada e confusa, mas também é verdade que graças a me ter metido nisto estou a ter oportunidades incríveis. Esta visita foi uma delas, que não vou esquecer. Não sei preços de nada, não sei se há mínimo de pessoas para se fazer um visita guiada, mas se por acaso ficarem curiosos, não pensem duas vezes.
Quando lá for ver um ópero conto-vos como foi.
Ficar fascinada é (Sinónimo de) Carmezim.
Marta.