BBC à porta de casa
Sou uma rapariga que toda vida viveu no campo. Vivo numa aldeia pequena, com muito verde à volta e os meus vizinhos têm ovelhas. Os cães e os gatos - sobretudo os gatos - andam à solta e é preciso cortar caniços, pelo menos, umas duas vezes por ano. Apesar de este ser o cenário que me rodeia desde o meu primeiro dia de vida, sou uma rapariga do campo disfarçada, porque por dentro acho que o sou muito pouco.
Considero-me uma pessoa simples, mas nunca tive o hábito de brincar na terra ou de apanhar bichos para colecionar. O mais perto que tive disso foi uma família de bichinhos da conta que amei de coração até eles ficarem grandes demais para o meu gosto. Chegou a um ponto que tiveram de ser despejados da sua caixa de sapatos, que eu tão amorosamente tinha arranjado, mas estavam a chegar àquele ponto em que já me arrepiava ao vê-los. Já pensava que me iam subir para o quarto - e eu durmo com a boca aberta. Entendam o pânico.
O máximo que fiz dessas coisas giras que se fazem nas aldeias era pegar na bicicleta e ir com os amigos descobrir sítios onde - achávamos nós - ninguém ia. Não era das mais aventureiras, aliás, costumava ser a que ficava atrás do grupo porque acelarar em caminhos de terra era algo que também me assustava um bocadinho. Nestas voltas todas de bicicleta só tenho memória de ter visto uma coisa que me assustou a sério e que me fez acelarar ribanceira abaixo: um lagarto que mais parecia um dragão de komodo. Nunca mais me esqueci. Até vos posso levar ao sítio em que ele se atravessou à frente da minha bicicleta. Juro que era igual a um dos dragões da Khaleesi, poucos episódio depois de terem saído dos ovos. A partir desse dia, nunca mais me desviei ou arrepiei quando via lagartixas, daquelas fininhas, até fofinhas, nas escadas de minha casa.
Visto que a minha casa se encontra no meio do campo, existem duas maneiras de cá chegar: um caminho onde geralmente circulam os carros e outro - batizado por mim como "caminho das cabras" - que é uma espécie de atalho. Não é um caminho cuidado, de terra batida, cheio de buracos e por isso serve maioritariamente pessoas que passam ali a pé. Eu incluída. Se for pelo caminho dos carros passo por imensas casas, geralmente pessoas na rua e até carros. Quando chego da faculdade prefiro voltar para casa pelo caminho das cabras porque, mesmo sendo mais difícil de andar, gosto de não passar por nada nem ninguém. São ali dois minutinhos em que umas vezes penso no quanto quero chegar ao sofá, outras penso no que tenho para fazer em casa. É um momento do qual tiro muito partido. Só que hoje foi diferente.
Hoje, saí do autocarro na paragem mais próxima do caminho das cabras, tal como faço todos os dias. Iniciei a minha caminhada, calma, descontraída... mas cheia de calor. Tinha vindo toda a viagem sob ar condicionado e quando saí a porta do autocarro senti uma autêntica chapada do bafo que estava na rua. Aquele calor só me fez lembrar o lagartão que vi há quinze anos atrás. "Deves estar a adorar este calor... hás-de estar por aí algures, escarrapachado ao sol, sem querer saber se vais matar alguma pobre menina de susto. Cabrão." Parecia que estava a adivinhar, não é?
Começo a minha travessia normal e quando entro no caminho de cabras propriamente dito comecei a ficar um bocado desconfortável. As ervas já começam a ficar muito em cima do caminho, nalgumas zonas até já tenho que me desviar, mas isso nunca me fez muita confusão. Hoje, com o calor, essas ervas começavam a estalar à minha passagem por estarem completamente secas. "E com este calor de certeza que as lagartixas também andam aí. Não é nada de especial!" . Láia estremecendo um bocadinho, mas nada demais. Até que mesmo ao meu lado direito, escorregando rápido duma das encostas, cai-me aos pés a maior cobra que já vi na vida.
Naquelas voltas de bicicleta vi várias, daquelas fininhas, com pouco mais de 20 centímetro. Ao início gritava feita miúda parva mas depois percebi que me bastava dar um saltinho por cima delas ou fazer um movimento mais brusco para elas desaparecerem. "Elas têm mais medo de ti do que tu delas", sempre me disse a minha mãe. Nenhuma dessas cobrinhas era sequer remotamente parecida com a besta que me caiu aos pés ontem.
Para além de comprida - ficou toda enrolada à minha frente, nem percebi bem a dimensão - era gorda. Grossa mesmo! Só de escrever isso ainda a ouço a escorregar pela terra seca. Felizmente, o meu cérebro não demorou demasiado tempo a reagir. Primeiro, tive a reação que se espera da minha pessoa numa situação tão extrema...
A sério. Tal e qual. Só faltou o close-up. Depois do grito, escusado será dizer que foi isto que aconteceu...
Depois tive que parar e pensar "Mas tenho que chegar a casa de qualquer maneira...",. O meu Rapaz, ao telefomóvel, dizia que com o grito que dei de certeza que a tinha espantado. Agradeci o conselho, mas obviamente que não ia voltar para trás para confirmar. Até lhe pedi que fosse ao Google pesquisar por "cobras venenosas zona oeste" - só pelo sim, pelo não. Conclusão: tive que dar uma volta enorme, muito maior do que qualquer outra do que faria em dia normal, quer fosse pelo caminho das cabras ou pelo caminho dos carros. Ia tão fora de mim que no caminho assustei-me mais três vezes. Com cães. Que já sabia que lá estavam. Porque me ladraram. Dêem-me desconto, ainda estava com taquicardias.
A grande questão que se coloca agora é: irei eu ser capaz de amanhã voltar a ir pelo caminho das cabras? Provavelmente não e isso é uma chatisse do caraças... mas antes a chatisse do que voltar a ver aquele exemplar da BBC.
Medo de répteis é (Sinónimo de) Carmezim.
Marta.