Eu é que sou o peixe fora de água
O calor excessivo é uma coisa com a qual me dou muito mal. Por essa razão, pensar nos meses de julho e agosto começa-me logo a trabalhar na ansiedade porque sei que não vou conseguir dormir, comer, andar na rua à vontade e que vou andar a transpirar constantemente como se tivesse acabado de treinar. Ao contrário de 99.9% das pessoas aqui da minha zona - que ainda por cima é tão perto do mar - prefiro muito mais um bom dia de inverno.
No entanto, também entendo que verão não tem que ser só sinónimo de torrar ao sol e tão lagosta que nem se consegue vestir uma t-shirt. O verão também tem coisas agradáveis. Por alguma razão, uma das coisas mais agradáveis do verão e que toda a gente parece ter esse mesmo desejo quando começam a chegar os meses de calor é comer sardinhas.
Podia ser comer sushi, comer salmão grelhado, talvez até uns carapaus, mas não. Quando está calor a malta gosta mesmo é de comer sardinhas. Sem ser na altura das festas dos Santos Populares sei que é um bocado costume, no entanto, fora essa altura, não existe qualquer tradição para este desejo que surge em tanta gente, grávidos ou não.
O mais interessante ainda são as conversas que vão surgindo à volta de uma mesa enquanto se come um banquete de sardinhas: quanto custou, quem encontrou mais sardinhas "moídas" - vá-se lá saber o que isso é -, quem já comeu mais vezes sardinhas no ano presente, quem está a comer a primeira sardinha do ano e, para terminar, apenas grandes e sentidos suspiros de como aquele banquete está a saber bem porque o desejo de comer uma sardinha era tanto.
A questão que coloca aqui é a seguinte: porquê? Ao comer um naco na pedra, o osso é praticamente inexistênte e por isso, o desejo de comer um naco parece-me não só legítimo como normal. O desejo de sushi também, visto que é só agarrar e pôr na boca até nos sentirmos a rebolar. O desejo de outros peixes, do bacalhau, do carapau ou do salmão, também me parecem normais. Se se encontrar uma espinha, tira-se e parece que estamos a comer carne do mar. Uma maravilha. Agora, sardinhas? PORQUÊ?
Para mim, a toda a experiência de comer sardinhas roça o martírio. Podemos começar pelo assar as sardinhas. O cheiro que fica no ar não só é trinta mil vezes mais forte do que se estivermos a cozinhar carne na grelha, como também é trinta mil vezes pior. É aquele verdadeiro cheiro a peixe, com toda a carga depreciativa que essa expressão carrega. Depois, o tamanho. Parecem peixinhos de aquário. Olho para aquilo e pergunto-me quantas sardinhas terá uma pessoa que comer para se sentir minimamente satisfeita.
Depois, a questão de ser uma lotaria. Reparei que quando soa o alarme da sardinha "moída", não há nada que se aproveite nesse bicho. Portanto, deduzo que se alguém tiver o azar de comprar 30 sardinhas e haver 30 sardinhas moídas, não há almoço para ninguém. Isto jamais aconteceria com uma febra, meus caros. É um facto.
Para terminar, a parte que me faz mais confusão: o sofrimento de comer uma sardinha. Ontem comi quatro e foram várias as vezes em que achei que ia cuspir um pulmão, tal era a força com que tossia. Não, não foi pelo pó do ar, foi mesmo por causa daquelas espinhas quase invisíveis que parece que crescem assim que as engolimos. Foi como um duelo à lá Guerra dos Tronos, tão afiadas que eram as espinhas, mesmo na minha garganta. Ou tossia, ou tinha que comer bocados enormes de pão para "empurrar". E quando me picavam a gengíva? Quase que ficava de lágrima no canto do olho, como diz o outro.
Há muitas coisas agradáveis no verão, mas esta, que toda a gente tanto gosta, é mais uma daquelas coisas que não entendo. Amigos apreciadores de sardinhas, expliquem-me como tirar partido desta experiência porque cá em casa este desejo é tanto que ou eu aprendo a gostar e a entender esta tendência ou fico a olhar para eles a comer agarrada a um pacote de Oreo.
Sardinha não é (Sinónimo de) Carmezim
Marta.