Guardado na estante #4 | Deus das Moscas
No seguimento da minha lista de "Livros Bons, Daqueles Que Não Podemos Não Ler", agarrei-me a "Deus das Moscas" de William Golding. Já o terminei há alguns dias, estanto agora num livro bem levezinho e bem diferente dos últimos de que tenho falado aqui no blog - e mal posso esperar para partilhar com vocês o que tenho achado.
Este é um livro com o qual convivi bastante nos últimos três anos, porque quase todo o aluno da Faculdade de Letras já teve que trabalhar sobre ele em alguma cadeira. Sem ler nada sobre a história ou sobre o próprio autor, este foi um livro que sempre me despertou muita curiosidade, sobretudo pelo nome e pela capa: sim, sou uma dessas pessoas horríveis que é capaz de ter estes dois aspetos em conta na hora de escolher um livro. Quando pude finalmente pôr as minhas mãos na edição que me chegou a casa e li a contra-capa, ainda fiquei mais entusiasmada com a leitura que se aproximava. Pareceu-me o tipo de história que eu não consigo largar por muito que tente.
Já tive alguns dias para refletir sobre esta obra, e mais uma vez, acho que tive o prazer de ler as palavras de um grande mestre da escrita. São vários os livros que se apoiam, por exemplo, nas teorias de Thomas Hobbes ou até John Locke, nas quais a condição do Homem é trabalhada e sobretudo questionada. Em obras como "Leviathan" de Hobbes ou "The Second Treatise Of Civil Government" de Locke, são questionados os valores do ser humano, e de como este necessita de uma figura de autoridade institucionalizada e legitimada de forma a manter a ordem na sociedade. "Deus das Moscas" é um livro que gira em torno desta temática, apresentando ao leitor várias personagens que pretendem representar diferentes características da sociedade - neste contexto, da sociedade da Guerra Fria.
A consciência e a razão que se opõem aos instintos animalescos que se apoderam do Homem na luta pelo poder são alguns dos traços mais marcantes das personagens tão bem criadas por Golding. Tudo isto acaba por se tornar especialmente arrepiante porque Golding foi maquiavélico ao ponto de personificar estes traços em crianças que não têm mais de doze anos. A crítica torna-se especialmente flagrante neste ponto: mesmo as figuras que a sociedade considera como inocentes, acabam por se deixar corromper na hora de querer ter o poder sobre os restantes - sobre os que lhes parecem mais fracos.
Se nos concentrarmos no contexto em que vemos o acidente que dá início à obra acontecer - o contexto da Guerra Fria - fica claro que o conflito que estala entre estas crianças é também uma metáfora para o conflito entre um regime democrático - onde todas as vozes são ouvidas e que por isso pode facilmente dar aso a decisões que podem não agradar a todos - e um regime ditatorial - aqui identificado pela falta de regras, onde a vontade de um se sobrepõem à dos restantes, através da fomentação do medo, pela violência.
Apesar de parecer uma obra de leitura muito simples - que na minha opinião, não se poderia comparar à complexidade da escrita e até dos mundos criado por Orwell ou por Huxley - não deixa de ser um resumo daquilo que sempre caracterizou a espécie humana.
A única coisa que me desiludiu foi a única aparição do Deus das Moscas. Depois de ter lido a contra-capa, fiquei pronta para ler uma obra de fantasia e - embora não deixe de o ser - achei que o ser que dá nome ao livro não tem protagonismo algum, enquanto personagem que interage com as restantes. Fui passando as páginas sempre à espera de mais um encontro que nunca aconteceu. Contudo, percebi o porquê disso acontecer, tendo em conta o tom e mensagem deste livro: o mito, tanto no livro como num regime ditatorial, é uma das ferramentas usadas pelo governo para manter a ordem entre cidadãos, desprezando por completo o contrato social que a democracia pretende estabelecer. Na obra, o mito do Deus das Moscas é a forma que Jack tem de manter os mais novos sob a sua alçada, influenciando-os a ver Ralph ou até Piggy como o verdadeiro inimigo.
Uma obra fantástica para se discutir à volta duma mesa.
Podem acompanhar o meu progresso nas leituras no Goodreads.
4 em 5
Bons livros são (Sinónimo de) Carmezim.
Marta.