This Is... Vida Real
Estávamos em Outubro, já não me lembro de que ano. Estava em casa com a minha mãe, só as duas. O meu irmão estava quase a chegar do trabalho e vinha cá a casa almoçar connosco. O meu pai estava de serviço. Era sábado e por isso, seria de esperar que eu acordasse um bocadinho mais tarde. Nesse dia, não foi isso que aconteceu. Nesse dia acordei relativamente cedo para alimentar o meu maior vício de então: jogar Sims 2.
Jogava isso há imenso tempo, mas por momentos esqueci-me daquele jogo. Cheguei mesmo a desinstalá-lo do computador do escritório. No entanto, naquela semana lembrei-me e voltei a instalar o jogo. Começaram os momentos de nostalgia e o vício voltou. Como eu gostava de estar ali sentada a jogar com aquelas famílias. Gostava ainda de jogar enquanto ouvia música, de preferência alta. No escritório, o volume da música não incomoda o resto da casa.
A minha mãe deu por falta do pão e isso não pode faltar. Tal e qual o meu pai, o meu irmão também não gosta de fazer uma refeição sem o cesto do pão à frente. Ela foi à loja e eu fiquei responsável de ficar de olho no almoço. Era algo com batatas fritas, que tinham acabado de ser postas na fritadeira. A minha mãe veio ao escritório e disse para dali a dez minutos eu ir desligar o lume porque as batatas fritas já estariam prontas. Eu acenei que sim com a cabeça, mas ainda assim estava vidrada na música e no ecrã do computador.
Passado um bocado comecei a ouvir uns barulhos estranhos que se sobrepunham à música alta. Baixei o volume e fiquei à escuta. "Mãe? És tu?!" e ninguém respondeu. Ouvi o barulho de algo a cair no meio do chão e a desfazer-se em mil pedaços. O meu coração começou a bater mais rápido. O meu primeiro pensamento foi: está alguém cá em casa que não é a minha mãe.
Devagar, levantei-me da cadeira da secretária e espreitei para o corredor. Não me lembro em que ano isto foi, não me lembro quantos anos tinha ao certo, mas lembro-me desta imagem: da porta da cozinha saía uma nuvem gigante, completamente negra. A minha cozinha estava a arder e a porta de saída mais próxima era precisamente na cozinha. Eu estava sozinha, esqueci-me da porcaria das batatas fritas e agora tinha a cozinha a arder.
Não me lembro do caminho desde o escritório até à cozinha, mas lembro-me de outra imagem. A imagem que vi quando entrei na cozinha. O candeeiro comprido já só estava pendurado por um dos lados - provavelmente foi isso que eu ouvi a partir. Os azulejos das paredes começaram a desprender-se e a cair no chão, tal era o calor. Um dos cortinados já ardia, o que estava mais perto do fogão. A fritadeira já nem se reconhecia. Os móveis por cima da bancada da cozinha ardiam também, fazendo com que as chamas chegassem ao teto - que era branco e estava negro.
Quando dei por isso, já não conseguia respirar. A sensação que tenho hoje é que fiquei vários segundos ali parada a tentar perceber que aquilo era realmente verdade e que estava realmente a acontecer. Os meus pulmões começaram a ficar secos, a arranhar a cada respiração. Tentei chegar à porta, consegui abri-la e gritei por ajuda, com esperança que os meus vizinhos ouvissem. No momento em que grito vejo um carro vermelho descer a rua. Lembro-me de achar que eram os bombeiros, como se tivessem adivinhado que a minha casa estava a arder. Era a minha mãe e o meu irmão, numa carrinha de mudanças, que chegavam naquele preciso momento. Eles os dois apagaram o fogo inteiro sozinhos com a mangueira da rua e com cobertores e mais cobertores encharcados. Fora o pânico, eu fiquei bem. Ficámos todos.
Houve um dia que ouvi a minha mãe chorar por causa de ter a casa assim. Toda a casa tinha ficado afetada. Todas as roupas tinham cinza e todas as paredes tinham ficado manchadas. A cozinha ficou totalmente destruída. Diziam-me sempre que não fazia mal, que o importante era estarmos todos bem, mas ainda assim sentia um peso que jamais sentira ou voltei a sentir desde então. Custava-me a adormecer com o cheiro a fumo em casa. Fechava os olhos e via o fogo. Desde aí que até uma lareira sem porta me deixa meia desconfiada.
Ontem saiu o episódio 14 da segunda temporada de uma das minhas séries preferidas: This Is Us. Já falei várias vezes desta série aqui e já vos contei como acho que cada uma daquelas personagens representa alguém, em algum momento da sua vida. O episódio de ontem tocou-me especialmente porque mostrou o momento mais dramático da vida daquela família que, embora seja pura ficção, não o é.
O episódio tem 45 minutos e passei cerca de 40 de lágrimas nos olhos porque - e eu não queria mesmo estar a dar spoilers - se centra no incêndio que para sempre mudaria a história daquela família. Nas cenas dentro do incêndio, vi em cada um deles aquilo que senti naquele dia. De verdade. Embora o pós incêndio não tenha sido tão trágico como foi neste episódio, fez-me relembrar a sorte que eu e a minha família tivemos.
Depois de ter visto este episódio cheguei à conclusão que deve ser por isto que se fazem filmes e séries. Se, até aqui, já havia sempre algo nesta história que me tocava, com a qual eu me pude identificar, este episódio tocou-me de uma maneira que eu achei que não seria possível. Foi incrível. Foi triste. Foi agridoce. Foi a vida, tal como o próprio nome da série nos diz. Foi a história de um erro que pode parecer minúsculo, como esquecer as pilhas dos alarmes de incêndio ou esquecer de ir ver as batatas fritas, mas que pode mudar tudo.
E vocês, viram este episódio incrível?
Lições para a vida são (Sinónimo de) Carmezim.
Marta.